Livro de Arthur Bezerra trata dos dilemas éticos da era digital

Miséria da informação: dilemas éticos da era digital (Editora Garamond, 2024) é o título do novo livro de Arthur Coelho Bezerra, Presidente do do ICIE, pesquisador do Ibict, professor do PPGCI/Ibict-UFRJ, e coordenador do Escritos. A obra conta com financiamento do Programa de Auxílio a Editoração da Faperj.

A capa traz um pouco da contradição que constitui a realidade dos nossos dias. Foi feita com auxílio de tecnologia digital e reproduz o cenário de terra arrasada pelo garimpo ilegal de ouro no Brasil. O ouro é um condutor de eletricidade essencial para o funcionamento da tecnologia digital, presente em computadores, smartphones, televisores e demais transmissores de informação. Graças ao ouro e a outros minérios como o coltan, é possível não só criar estas imagens, mas também usar as redes digitais para concentrar riquezas, exercer formas de controle social e político, propagar desinformação e estimular o negacionismo científico e ambiental.

 

“A miséria do solo é o ponto de partida e o ponto de chegada da miséria da informação.”

 

Os primeiros lançamentos do livro aconteceram em Portugal em julho de 2024, na Universidade de Lisboa, durante a programação oficial do Edicic, e na Universidade de Coimbra, durante a Media Ethics Conference.

Ao longo do segundo semestre de 2024 o livro foi lançado em diversas cidades do Brasil e em eventos científicos como o 24º Encontro Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciência da Informação (Enancib), o 30º Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD) e o 10º Encontro Nacional da União Latina da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC-Brasil).

No CBBD, que aconteceu em Recife-PE, de 25 a 29 de novembro,  o autor realizou conferência onde apresentou as temáticas presentes na obra. “Esse livro é uma espécie de sobrevoo analítico por diversos dilemas éticos da nossa era digital, que são resultados de uma série de contradições que a gente percebe no atual ecossistema informacional”, diz o autor.

Dentre esses dilemas, o pesquisador reflete sobre contradições como a conexão ampliada e o isolamento individual, a fragmentação da esfera públicas pelas redes sociais, a inteligência artificial e o conhecimento humano, a aceleração tecnológica e a falta de tempo livre, a flexibilização e precarização do trabalho, a liberdade de expressão que dá asa ao discurso de ódio, o acesso à informação e o obscurantismo negacionista, e a sociedade da hiperinformação que inaugura a era da desinformação.

O livro está dividido em 10 capítulos, que refletem, de forma crítica, formas dominantes de produção, circulação e consumo de informação. “Hoje toda experiência humana gera dados”, diz o autor. Para ele, o atual cenário informacional favorece fenômenos como a desinformação, o discurso de ódio e o negacionismo científico. “Desinformação sempre houve. A questão é que hoje a desinformação é digital e apoiada em rede”.

Entre os fatores que ampliam a desinformação, o pesquisador cita a mediação algorítmica de grandes plataformas, o uso de dados pessoais para fins comerciais, o input inadequado de modelos de linguagem da inteligência artificial e a falta de competências informacionais de usuários. Por fim, ele abordou o conceito de “colonialismo de dados”, em que países do Sul global utilizam recursos naturais e matéria-prima para a produção de tecnologias de grandes infraestruturas informacionais e de dados.

“Esses diversos dilemas éticos da era digital precisam ser conhecidos. Precisamos conhecer a realidade para transformá-la e se engajar em ações pelo uso ético das redes e pelo desenvolvimento tecnológico de software e de hardware da estrutura tecnológica, pra que a gente possa ser um país mais soberano tecnologicamente e para que nós, como indivíduos, possamos ter uma internet mais autônoma e livre, fazer nossas escolhas de forma mais consciente”, acredita Bezerra.

 

Miséria da informação: dilemas éticos da era digital está à venda no site da editora ou na Amazon (também em versão e-book, em português e espanhol)

No canal do grupo de pesquisa Escritos no YouTube é possível conferir vídeos do autor, um gravado para o Clube de Leitura do Felipe Neto (veja aqui) e o outro com a leitura integral do capítulo 6 do livro (veja aqui).

 

Conheça um pouco da obra:

Sumário do livro

  1. O dia em que a internet parou
  2. A ética do compartilhamento e o “espírito” do capitalismo digital
  3. O novo regime de informação
  4. Vigilância, expropriação e alienação de dados
  5. A mediação dos algoritmos
  6. Desinformação, ódio e negacionismos
  7. Tecnologia e precarização do trabalho
  8. Usuários improdutivos
  9. A ideologia dataísta
  10. Lutas de classes no século XXI

 

Trecho inicial da Introdução

Tomado por seu valor de face, o ecossistema informacional de nossos dias parece ser algo revolucionário, com suas telas brilhantes, suas conexões invisíveis, seus sensores oniscientes e sua velocidade instantânea de comunicação e processamento de dados. O inovador aparato tecnológico, dotado de avançadas técnicas de organização algorítmica e representação digital da informação, se mostra capaz de trazer mais previsibilidade sobre o resultado de ações humanas, antecipar fenômenos da natureza, aumentar a eficiência de processos produtivos, ampliar potencialidades artísticas e científicas e mitigar riscos inerentes ao planejamento das mais diferentes atividades da vida, garantindo agilidade, conforto, eficácia e segurança.

Um exame mais detalhado das atuais formas dominantes de produção, circulação e consumo de informação, no entanto, revela um grande número de dilemas éticos, resultantes das contradições que se escondem sob a fina epiderme de vidro e plástico dos aparelhos que metade da população mundial carrega no bolso. Dentre essas contradições, temos a conexão ampliada que estimula o isolamento individual; a rede social que fragmenta a esfera pública; a inteligência artificial que hipertrofia a estupidez humana; o aprendizado de máquinas que promove a ignorância de pessoas; a memória computacional que forja a amnésia cerebral; a aceleração tecnológica que aniquila o tempo livre; a flexibilização do trabalho que leva trabalhadores ao sobretrabalho; a liberdade de expressão que dá aso ao discurso de ódio; o acesso à informação que é eclipsado pelo obscurantismo negacionista; a sociedade da hiperinformação que inaugura a era da desinformação.

Todas essas contradições, que serão abordadas ao longo deste livro, estão relacionadas a um fato histórico determinante: o advento de um novo regime de informação no século XXI, no qual novas formas de produção, circulação e consumo de informação se encontram submetidas às velhas relações sociais do modo de produção capitalista, hoje metamorfoseado em sua versão digital. Trata-se de um regime que, dialeticamente, conduz à miséria da informação.

 

Orelha do livro, por Maria Nélida González de Gómez

Miséria da Informação é um texto denso e generoso, muito bem ancorado no estado atual das discussões sobre os temas abordados, e que não cede a esperança de encontrar no presente a prenhez do futuro.

Uma das principais realizações desta obra é trazer à luz, como problema de civilidade democrática e justiça social, o que aparece como um inabalável presente, reabrindo o debate sobre experiências e encaminhamentos tecnológicos em diferentes regimes de informação, que, em soma, são resultantes dos diferentes regimes de políticas. Nesse contexto, surgem questões sobre destruição das esferas digitais quase públicas pela desinformação e ações delituosas de difamação, trazendo a contraposição entre um futuro algorítmico projetado pelas Big Tech e os efeitos disruptivos da matriz energética em que se amparam.

Arthur Bezerra recupera e contextualiza os esforços latino-americanos pela atualização democrática dos marcos legais na Infoesfera, e permite conhecer as realizações e avanços nessa direção nas políticas científico-tecnológicas brasileiras.

Se significativo em qualquer área do conhecimento, o livro traz aportes diferenciais para áreas da Ciência da Informação, Comunicação, Computação, Ciências Sociais, Biblioteconomia, Documentação e Saúde, oferecendo recursos argumentativos e informacionais eficazes para educadores, em todos os níveis da formação geral e profissional, assim como para gestores e movimentos sociais. Acredito que Miséria da Informação será um recurso de leitura poderoso em cenários políticos e acadêmicos do Brasil e da América Latina.

 

Trecho do Prefácio de Marco Schneider

O novo livro de Arthur Bezerra, como manda o figurino, faz jus ao seu título, chamando nossa atenção para a miséria da informação que nos assola, contraditoriamente resultante da fartura informacional perdulária e caótica – como quase tudo sob o capitalismo é perdulário e caótico – produzida no novo regime de informação em meio ao qual vivemos. Ou sobrevivemos.

O que significa “miséria da informação”? Não tendo perguntado diretamente ao autor, arrisco: além de parafrasear conhecido título de um livro de Karl Marx (principal referência teórica de Bezerra), Miséria da Filosofia – que já no título ironiza o livro Filosofia da Miséria, de Proudhon, e no qual Marx tece uma crítica mordaz à teoria econômica do anarquista francês e a sua apropriação confusa de Hegel –, Miséria da Informação remete a uma pletora de significados da maior atualidade: à pós-verdade; às fake news; à desinformação, em todas as suas modalidades, da ignorância pura e simples, como simples ausência de informação, à ignorância deliberada e fabricada profissionalmente, que de pura não tem nada; aos discursos de ódio da extrema direita; ao revisionismo histórico; ao negacionismo científico; e, talvez por último, mas não menos importante: às velhas e novas modalidades de exploração e superexploração do trabalho, que compõem e sustentam mais direta ou indiretamente o novo regime de informação, conceito chave do livro.

Miséria da Informação tem o mérito de operar uma ótima síntese do que de principal se tem escrito e documentado ultimamente sobre a apropriação da internet por algumas poucas corporações capitalistas gigantescas, com todas as consequências conhecidas por quem estuda o tema e sentidas por bilhões de pessoas afetadas pelos processos implicados nessa apropriação. Só isso já faria deste livro leitura obrigatória, não somente para quem tiver interesse em economia política e ética da informação, mas para quem quer entender o nosso tempo. Bezerra, contudo, faz mais do que extrair criteriosamente o sumo da literatura teórica e documental de referência mais atual: ele o faz municiado de um instrumental conceitual robusto, de extração marxiana, que lhe faculta operações crítico-analíticas de maior envergadura quando operam em níveis mais altos de abstração e ao mesmo tempo precisas no trato do detalhe teórico ou empírico.

Dentre as análises mais finas, destaco a perspicácia do autor ao denunciar a captura da causa cidadã de uma internet livre pelas corporações, mormente dos Estados Unidos, convertendo-a no lobby por uma internet desregulada; ou a corrupção da ética do compartilhamento em empreendimentos altamente lucrativos de mediação entre usuários e provedores de serviços, à margem de legislações trabalhistas; além de diversas outras análises desveladoras dos múltiplos movimentos de ocultamento do que essencialmente está em jogo por trás das aparências lúdicas, clean e úteis das telas brilhantes e conexões invisíveis.

 

Arte da capa: Marcia Azen

* Texto composto a partir de matérias publicadas originalmente no site do Escritos e do IBICT.

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